Obras trouxeram à tona pisos de construções coloniais do século XIX. Peças devem ser reunidas e expostas ao público.
Os últimos dias de 2014 e os primeiros de 2015, quando o Rio completa os seus 450 anos, trouxeram um presente para a cidade, escondido pouco abaixo de onde diariamente passam milhares de cariocas.
Recentes escavações para as obras de implantação do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) na Avenida Rio Branco estão revelando fragmentos que podem ser pisos de construções coloniais do século XIX.
Os trechos que estão mais bem preservados, como um que surgiu próximo à Cinelândia, serão retirados pela concessionária responsável pelo projeto, que está realizando o trabalho com o apoio de uma empresa especializada em arqueologia, sob a supervisão do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). A intenção é que as peças sejam reunidas e expostas futuramente ao público.
— Até agora, já encontramos pelo menos 20 fragmentos que podem ser pisos de construções do século XIX na região, como comércios, residências e cortiços. Por mais que esteja deteriorado, todo esse material está sendo escaneado a laser para que possa ser reconstituído digitalmente, gerando, por exemplo, maquetes em três dimensões. Os mais preservados serão cirurgicamente retirados para um futuro projeto de divulgação — explica a coordenadora-geral do Programa Arqueológico VLT do Rio, Erika Gonzalez.
CARTOGRAFIA AJUDARÁ NA IDENTIFICAÇÃO
Erika acrescentou que já era esperado que fossem encontrados esses fragmentos, mas o estado de conservação era uma incógnita. Uma equipe de historiadores está trabalhando com toda a cartografia que existe da época, e o objetivo é descobrir exatamente a que construções pertenciam as pedras encontradas.
O material ficou escondido após a abertura daquela que, ainda hoje, é uma das vias mais importantes da cidade, a Avenida Rio Branco, antiga Avenida Central. A via foi o principal marco da reforma urbana realizada pelo prefeito Pereira Passos no início do século XX, há 110 anos.
— Muitos trechos estão mais degradados porque eles acabaram servindo de suporte para a colocação de redes de água, esgoto, entre outras que foram feitas após a criação da Rio Branco. Nosso trabalho tem duas etapas básicas: o registro de tudo o que é encontrado e a retirada do material mais preservado. Queremos poder recontar, de forma palpável ao público, toda essa história que estava escondida debaixo de onde está sendo realizada a obra — conclui Erika.
Apesar de recente, a descoberta já causa repercussão. Para o arquiteto e urbanista Augusto Ivan Pinheiro, o achado pode traçar um mapa mais confiável das ruas do Centro da cidade. Ele também acredita que trata-se de uma pavimentação provavelmente do final do XVIII e início do XIX, ainda do período colonial.
— Pode ser ainda mais antiga, pois ali tinha a descida do Morro do Castelo, um dos pontos de fundação da cidade, e que ligava vários caminhos como, por exemplo, o da Ladeira da Ajuda, que hoje segue para a Zona Sul — ressalta o especialista, acrescentando que essa área é bastante antiga.
Na Cinelândia, segundo ele, existia o Convento da Ajuda, também do século XVIII.
— Foi dali que partiram os caminhos em direção às vias que atualmente seguem para o Catete. Outro caminho importante, que se comunicava com esse trecho, era o de Matacavalos. Trata-se, hoje, da Rua do Riachuelo, assim como o Largo da Mãe do Bispo, que também era naqueles arredores. É uma descoberta muito interessante — diz ele.
Erika acredita que, por não terem o formato tão arrendondado, as pedras não sejam um tipo de calçamento pé de moleque, mas somente estudos complementares vão poder dar essa certeza. Ao ver uma foto, porém, o pesquisador João Baptista Ferreira de Mello deu uma opinião diferente e disse acreditar ser sim do tipo pé de moleque, usado para revestir as vias públicas no período do Brasil Colônia.
— Reparem o tamanho irregular das pedras, pequenas, médias e grandes. As pedras eram fixadas no chão dos nossos caminhos por dois escravos e uma mula — conta.
SÍNDICO FOTOGRAFOU ACHADO
João Baptista recorda que a implantação da Avenida Rio Branco passou por cima de dezenas de sobrados e construções, além de soterrar becos, ruelas e travessas do período colonial.
— A abertura da Avenida Rio Branco, com seus 33 metros de largura, soterrou este pedaço do passado da cidade. Ali, existiram becos, ruelas e travessas com piso pé de moleque, típico do período colonial. Este tipo de piso ainda pode ser visto na Ladeira da Misericórdia e na subida do Jardim do Valongo — afirma o pesquisador, professor de geografia da Uerj e coordenador dos Roteiros Geográficos do Rio, que promove passeios históricos pelas ruas da cidade.
Seja o que for, o fato é que o achado já vem chamando a atenção de cariocas mais atentos. Foi o caso do administrador de empresas Victor Braga, síndico de um prédio localizado em frente à obra do VLT na Cinelândia, que fez uma foto com o celular e enviou ao GLOBO:
— Adoro a história da cidade e quando vi este calçamento, localizado cerca de um metro abaixo do nível atual da Avenida Rio Branco, imaginei que deve ser um achado arqueológico importante.
O projeto do VLT tem previsão de ser concluído no primeiro semestre de 2016. Serão quatro estações e 38 paradas, distribuídas ao longo de 28 quilômetros no Centro do Rio e na Zona Portuária.
Fonte: O Globo