É necessário um relatório médico a confirmar que a ciência não explica os sintomas. Há pessoas que têm de ser amarradas e os casos graves são levados ao Papa. O Patriarcado fez um documento a reconhecer que os pedidos de exorcismo estão a aumentar.
Por Patrícia Silva Alves
A cerimônia começou pouco depois das 10h30. O padre estendeu a mão direita sobre a cara de Marta sem lhe tocar. Fechou os olhos e sussurrou preces ininteligíveis.
Então surgiu um som intenso, que veio do centro da sala, onde a espanhola de 20 anos estava deitada num colchão. Marta estava possuída.
Ao lado tinha o padre católico José Antonio Fortea. Tudo aconteceu em 2002 numa igreja em Alcalá de Henares, a 30 quilômetros de Madrid.
Na capela havia ainda um altar enorme com uma toalha branca onde estavam pousadas seis velas. Atrás, uma grande cruz iluminada por luzes de halogêneo.
O local não tinha janelas, nem saídas. Antes de tudo começar, o padre fechou a porta à chave, por dentro.
– Hic est dies [hoje é o dia] – disse o padre em latim com o crucifixo na mão.
– Não – respondeu uma voz rouca de homem que saiu da garganta de Marta.
– Exi nunc [sai agora], Zabulón.
– Não.
– Porque não queres sair?
– Para servir de testemunho.
– De quê?
– De que Satanás existe.
Esta descrição é de José Manuel Vidal, editor da seção de religião do 'El Mundo' e um dos vaticanistas espanhóis mais respeitados, que foi convidado a assistir ao exorcismo.
O artigo que relata a experiência foi publicado com o título 'O exorcismo que presenciei em Madrid'. O nome Marta e o da mãe, que a acompanhou na sessão, são fictícios. O do padre não é.
José Antonio Fortea, agora com 45 anos, é um dos principais exorcistas católicos espanhóis. A sua formação começou com uma tese de licenciatura sobre exorcismos que foi orientada pelo porta-voz da Conferência Episcopal espanhola, o bispo Juan Antonio Camino.
Foi por causa dela que aprendeu a fazer exorcismos – assistiu a 13. Há três anos que não exerce. Agora está em Roma a preparar a tese de doutoramento sobre o mesmo tema.
De acordo com o jornalista, no dia em que Marta foi exorcizada por Fortea, a espanhola parecia uma rapariga normal.
Vestia uma blusa azul-celeste de manga curta com gola alta e calças de ganga. Fora levada até ao exorcista pela mãe depois de consultarem dois psiquiatras que não encontraram explicação para as suas persistentes dores de cabeça.
Estava saudável, diziam. No entanto, as fortes dores continuavam e Maria, a mãe, recorreu a Fortea. O diagnóstico foi peremptório: Marta estava possuída por sete demônios há cinco anos. Ao longo de 16 exorcismos, Fortea conseguiu expulsar seis. A descrição feita pelo jornal corresponde à 17.ª sessão, para expulsar o demônio que resistia.
O que o jornalista ouviu não correspondia ao tom de voz de Marta. Era um som rouco e masculino que ia aumentando à medida que o padre continuava a rezar.
Os movimentos também. A dada altura, o corpo de Marta começou a agitar-se fortemente e a contorcer-se, enquanto a cabeça rodava de um lado para outro. Primeiro lentamente, depois com uma súbita rapidez. A sessão prolongou-se por quase três horas.
Num determinado momento, “a jovem gritou, bufou, colocou os olhos totalmente em branco, arqueou o corpo e levantou-se toda a um palmo do chão”. Tudo acabou sem que a possessão terminasse.
De repente, Marta voltou-se para os presentes, levantou-se e colocou os brincos que tinha retirado para a sessão. Não se lembrava de nada.
O debate sobre os exorcismos na Igreja Católica reacendeu-se desde que a 19 de Maio, domingo de Pentecostes, em que se celebra a descida do Espírito Santo sobre os apóstolos, o Papa Francisco colocou as mãos sobre a cabeça de Ángel V., um mexicano de 43 anos, na Praça de São Pedro, em Roma.
Manteve-as assim durante 13 segundos (mais sete do que a pessoa anterior a quem abençoou) em que Ángel se encolheu.
O homem, que estava sentado numa cadeira de rodas, diz-se possuído desde 1999. Rapidamente surgiram notícias de que o gesto do Papa tinha sido um exorcismo, o que foi negado pelo porta-voz do Vaticano, Federico Lombardi. Mas há quem conteste a versão oficial.
“O que o Papa fez foi um exorcismo e se o padre Lombardi diz o contrário é porque não percebeu nada do que se passou”, disse, por exemplo, ao vivo na rádio Rai 2, Gabriele Amorth, um dos mais reconhecidos padres exorcistas do mundo.
O italiano, hoje com 85 anos, pertence à Sociedade de São Vicente de Paulo e foi nomeado exorcista de Roma em 1986 pelo cardeal Ugo Poletti, que durante 18 anos foi vigário-geral da diocese.
O Papa Francisco não nega a existência do Diabo. Por exemplo, na sua primeira homilia, a 14 de Março de 2013, disse aos cardeais reunidos na Capela Sistina: “Aquele que não reza a Deus reza ao Demônio.” Aliás, o Vaticano reconhece que João Paulo II fez três exorcismos durante o seu pontificado.
O primeiro aconteceu a 27 de Março de 1982. Uma italiana chamada Francesca Fabrizi, então com 22 anos, chegou até ao Papa através de Ottorino Alberto, na altura bispo de Espoleto. A reação dela foi imediata.
“Ao vê-lo, começou a gritar e a rebolar-se pelo chão, não se preocupando que o Papa ordenasse ao Diabo que saísse dela”, descreveu Gabriele Amorth, no livro 'O Último Exorcista', lançado em Portugal em 2012 pela Paulinas Editora.
No entanto, de repente, tudo mudou quando João Paulo II disse a Francesca: “Amanhã, direi a missa por ti.” Nesse momento, a italiana acalmou-se.
Um ano depois, visitou o Papa. Nunca mais tinha tido ataques, estava casada e grávida. Na altura, João Paulo II comentou com o cardeal Jacques-Paul Martin, antigo prefeito da Casa Pontifícia: “Nunca tinha visto uma coisa assim. Uma verdadeira cena bíblica.”
O mais famoso exorcismo de João Paulo II aconteceu, porém, a 6 de Setembro de 2000. Foram precisas 10 pessoas para segurar Sabrina, que, mal viu o Papa a entrar na Praça de São Pedro, começou a gritar palavrões e a contorcer-se.
Apesar de a praça estar cheia, João Paulo II notou a presença da rapariga de 19 anos e pediu ao seu secretário, o então bispo Stanislaw Dziwisz, que lha levasse.
O Papa e Sabrina encontraram-se numa sala privada ao lado da Basílica de São Pedro. A mulher, que fora arrastada até lá pelos pais, estava em transe.
“Os seus olhos eram duas órbitas brancas. Babava-se e tinha a cabeça pendente para trás. Logo que foi levada até junto do Papa começou a gritar e a tremer”, conta Gabriele Amorth. “O Papa fez-lhe um exorcismo nesse lugar. Abençoou-a várias vezes. E, depois, deixou-a ir-se embora.”
O processo demorou 30 minutos, durante os quais João Paulo II realizou o chamado exorcismo menor, que não implica a leitura de textos bíblicos. Deu-lhe uma bênção, abraçou-a e Sabrina acalmou-se.
A possessão da italiana era intensa e resistente. Nessa tarde, Gabriele Amorth, que estava a acompanhá-la no processo semanal de exorcismos, teve de continuar.
“O Diabo estava enfurecido por causa do encontro com o Papa e, ao mesmo tempo, sentia-se forte, porque o exorcismo não tinha conseguido expulsá-lo”, explica o padre. O que viu a seguir deixou-o sem palavras.
“Sabrina levantou-se da cadeira em que estava sentada. Dirigiu-se a mim. Passou ao meu lado sem me olhar. Foi direita à parede atrás de mim e começou a caminhar horizontalmente pela parede em direção ao teto, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Depois, desceu como se não fosse nada”, descreve Amorth em 'O Último Exorcista'.
Sabrina, que não se lembrava de nada após o exorcismo, continuou a ser acompanhada pelo padre durante anos até se libertar por completo.
O texto-base que orienta o ritual do exorcismo foi escrito em 1614 e permaneceu inalterado por 385 anos: em 1999, o Vaticano atualizou o documento 'De Exorcismis et Supplicationibus Quibusdam' (Sobre exorcismos e certas súplicas) – uma prova da importância do tema durante o pontificado de João Paulo II. Não que Bento XVI fosse alheio às questões ligadas a Satanás.
De acordo com Gabriele Amorth, o Papa Emérito também ajudou a exorcizar dois homens, numa quarta-feira de Maio de 2009.
De novo, o caso aconteceu na Praça de São Pedro. Entre a multidão de fiéis que o saudava estavam dois homens possuídos, Giovanni e Marco, guiados por duas mulheres, assistentes de Amorth. A passagem de Bento XVI no seu jipe branco teve um efeito visível em Giovanni, que começou a tremer e a bater os dentes.
“O jipe percorreu toda a praça. Os dois dobraram-se e bateram com a cabeça no chão”, relata o padre em 'O Último Exorcista'. A reação intensificou-se à medida que o Papa se aproximou.
Quando Bento XVI desceu do carro, os dois homens começaram a gritar estendidos no chão. Alertado pela voz de uma das assistentes do padre exorcista, o Papa olhou para o grupo e abençoou os quatro. O movimento suscitou a reação imediata dos dois homens.
“Caíram três metros para trás. Estavam exaustos e já não gritavam, mas choravam. Gemeram durante toda a audiência. Depois, quando o Papa se foi embora, voltaram a si. Tornaram-se eles próprios.” Segundo a versão oficial do Vaticano, Bento XVI não fez qualquer exorcismo nesta ocasião.
O tema é polêmico dentro da Igreja Católica. Há poucas semanas, o cardeal Rouco Varela, arcebispo de Madrid e presidente da Conferência Episcopal espanhola, nomeou de emergência oito novos exorcistas. De acordo com a publicação online especializada em temas religiosos 'Religión en Libertad', isso deveu-se à “enorme avalanche de pedidos de ajuda relacionados com influências maléficas”.
Os exorcistas vão trabalhar em colaboração com um grupo de psiquiatras que ajudarão os padres a perceber se há ou não possessão.
Em Espanha, 26% das dioceses têm padres exorcistas autorizados. Em Portugal não há números oficiais dos padres nomeados por bispos diocesanos – uma exigência para que possam celebrar um exorcismo.
Em resposta à SÁBADO, fonte oficial da Conferência Episcopal apontou o nome de Duarte Sousa Lara, padre da diocese de Lamego e filho do antigo subsecretário de Estado de Cavaco Silva, Antônio Sousa Lara. O pároco é o único exorcista reconhecido pelo Vaticano que dá a cara em Portugal.
Nomeado a 20 de Março de 2008 pelo bispo de Lamego, Sousa Lara assistiu a vários exorcismos de Gabriele Amorth, que, a 23 de Fevereiro de 2007, escreveu uma carta em que o considerou “idôneo para o ministério de exorcista”.
A julgar por um documento emitido por D. José Policarpo e pelo Patriarcado de Lisboa em Fevereiro de 2012, o seu trabalho será cada vez mais requisitado.
“Tem vindo a aumentar o número de pessoas que, por se considerarem atormentadas pelos poderes do Mal, recorrem à Igreja procurando auxílio espiritual”, lê-se no texto que acompanhou a publicação das 'Normas Pastorais', um conjunto de regras que os padres devem seguir na celebração de bênçãos, funerais e exorcismos.
No entanto, quando contactada pela SÁBADO para atualizar a informação sobre a procura de exorcistas na diocese de Lisboa, fonte oficial não avançou com dados concretos.
Nas Normas Pastorais está uma espécie de guia prático para os párocos portugueses lidarem com casos em que há suspeitas de possessão.
Primeiro, é preciso discrição. “Todos os meios de comunicação social estão excluídos” antes, durante e depois dos exorcismos, aconselha o Patriarcado de Lisboa. Depois, é preciso precaução.
Os padres têm de “distinguir corretamente entre os casos de ataque do Diabo e aquela credulidade com que algumas pessoas, mesmo fiéis, pensam ser objetos do malefício”.
É ainda preciso descartar dúvidas. O documento aconselha os religiosos a certificarem-se de que “as pessoas atormentadas não tenham passado, sobretudo na infância, por situações traumáticas, como abusos físicos, psicológicos ou sexuais”, pois é muito provável que nessas situações “se trate de sugestão ou auto-sugestão de doenças do foro psicossomático”.
Finalmente, é preciso uma certeza científica. Um padre exorcista não deve avançar “sem antes consultar peritos em ciência médica e psiquiátrica, que tenham a sensibilidade das realidades espirituais”.
Aliás, o Patriarcado aconselha que se consultem dois especialistas. E há casos de médicos que assumem tê-lo feito. Victor Amorim Rodrigues, psiquiatra e professor de Psicopatologia do ISPA – Instituto Superior de Psicologia Aplicada, é um deles.
Há alguns anos, quando uma paciente com cerca de 40 anos lhe pediu um relatório para entregar a um exorcista, o especialista aceitou fazê-lo mesmo sendo cético.
“Se não tinha resposta, se ela já tinha passado por vários técnicos que também não tinham a resposta e se, objetivamente, não estava a conseguir melhorá-la, não me pareceu correto impedi-la, quanto mais não fosse pelo efeito da sugestão. A ciência está muito longe de saber tudo”, diz à SÁBADO Victor Rodrigues.
A paciente, uma enfermeira, estava numa situação de “grande apatia”. “Tinha algumas características da depressão, mas não a tristeza e o desânimo”, diz o especialista.
Isso tinha efeitos no seu dia a dia. Como estava a ficar cada vez mais lenta, quer a nível motor quer intelectual, começou a ter problemas no emprego.
“Estava tão apática que a própria chefe lhe dizia que não estava em condições de trabalhar”, explica o médico. Victor Rodrigues nunca mais soube da enfermeira, que não voltou ao consultório.
Este foi o único caso em que o especialista escreveu um relatório para um exorcista – um documento no qual incluiu, por iniciativa própria, a sua vinheta de médico. Acompanhou outros casos de pessoas que se diziam possuídas pelo demônio, mas eram casos de doenças psiquiátricas.
De acordo com o documento emitido pelo Patriarcado de Lisboa, o exorcismo tem por objetivo “expulsar os demônios ou libertar da influência diabólica”.
E para isso há um conjunto de sintomas que podem, e devem, manifestar-se para que alguém seja exorcizado. Um deles é a aversão às imagens e símbolos considerados sagrados pelos católicos. Por vezes, essa confirmação é feita de forma propositadamente dissimulada.
Sabendo que a reação à água benta é um dos sinais de quem está possuído, o padre Gabriele Amorth costumava misturá-la com a comida que dava ao possível possuído para saber se estava realmente influenciado. Em caso positivo, a pessoa cuspia-a.
Durante os exorcismos costumam acontecer reações violentas, porque uma das formas de saber se alguém está possuído é ver também se a pessoa manifesta “forças acima da sua idade e condição natural”, diz o Patriarcado de Lisboa.
Por causa disto, o padre Gabriele Amorth tratava os casos mais graves numa igreja em Roma, na via Emanuele Filiberto, pois era um local recatado. Lá tinha tudo o que precisava, como uma cama pequena e cordas para amarrar as pessoas mais agitadas.
Aos 33 anos, Aldina Cardeal era um desses casos. A professora do Porto foi exorcizada durante um ano em várias sessões por um padre português nomeado para esse efeito por um bispo.
“Houve alturas em que me tentavam segurar e só o conseguiam com alguma dificuldade. Por exemplo, lembro-me de um tio que me acompanhou ter comentado que era impossível eu ter tanta força”, diz Aldina Cardeal à SÁBADO.
Noutras situações, a professora, hoje com 35 anos, percebia que falava com uma voz diferente. “Num instante falava eu e no outro era o Demônio que falava. Isso só me acontecia quando tinha ataques mais fortes”, afirma.
Aldina diz ter agora uma vida muito diferente da que tinha antes de ser exorcizada. Por exemplo, deixou de ter dores físicas fortes. “O meu corpo ficava dolorido num espaço de poucos minutos. Era como se de repente tivesse corrido várias horas”, descreve.
Resultado: nos primeiros meses em que começou a sentir ataques mais fortes, ainda antes do exorcismo, quase não conseguia sair de casa. Preocupados, os familiares levaram-na ao psiquiatra.
“O médico diagnosticou-me esquizofrenia. Até hoje não toquei nos medicamentos. Embora pudesse estar enganada, tinha a certeza de que o meu problema era espiritual”, diz.
“Cada caso é único, o meu obrigou a vários exorcismos, mas entre uma sessão e outra ia melhorando. Aos poucos fui tendo uma vida normal. Comecei a trabalhar, a conviver com os amigos. Nunca mais necessitei de exorcismos. Os medos também terminaram. Tenho uma vida normal”.
Com Jaime Martins Alberto
Fonte: Sábado